Para uma história política do otimismo
Daniela Mussi e Alvaro Bianchi
Uma história do otimismo no movimento socialista está para ser feita. Em sua XI tese sobre o conceito de História, Walter Benjamin afirmou que nada havia sido mais prejudicial para a socialdemocracia alemã do que a crença de que navegava a favor da correnteza.[1] A confiança em que o incessante desenvolvimento das forças produtivas levaria ao fortalecimento do proletariado estava no coração do crescimento do maior partido operário que já existiu no Ocidente. Uma fé inquebrantável no progresso era o substrato desse otimismo, o qual transformou-se, primeiro, em teoria política nos escritos de Karl Kautsky para, em seguida, assumir o lugar de dogma inquestionável.[2]
No contexto das leis antissocialistas na Alemanha, o otimismo foi o cimento que garantiu a unidade do partido e sua força. Uma inquebrantável moral militante ergueu-se sobre a crença de que o futuro redimiria todos os sacrifícios. O caráter teológico desse otimismo é indisfarçável. Nele o socialismo era a escatologia que permitiria expurgar o mal e salvar a humanidade, permitindo o reencontro dela consigo própria. Não haveria um movimento socialista se o otimismo não tivesse predominado em suas fileiras. Foi ele o que permitiu a sobrevivência nas condições mais difíceis.
Se o otimismo alguma vez teve uma função progressiva no movimento socialista, esta cessou com a Primeira Guerra Mundial. O desenvolvimento das forças produtivas deu lugar à destruição massiva da civilização humana com a morte de onze milhões de soldados e sete milhões de civis. Ao contrário do que gostariam os socialistas de então, a Revolução Russa de 1917 não foi o último lampejo do otimismo e sim a revolta do desespero e da dor diante da fome e da guerra. O cru realismo dos bolcheviques os levou do exílio ao Smolny.
A guerra mundial e a revolução proletária são marcos de uma história da crise do otimismo que tem uma de suas primeiras manifestações no início da guerra. O francês Romain Rollland soube como poucos traduzir essa crise. No contexto da morte do escritor e amigo Charles Peguy no front, Rolland publicou em setembro de 1914 no Journal de Genève o artigo “Au-dessus de la mêlée” [Acima da batalha] em que lamentou a guerra, acusando as elites morais e políticas pelos sacrifícios impostos às gerações jovens de morrer em combate (Rolland, 1914a, p. 1; 1914b, p. 5). Rolland opunha a alegria heroica dos jovens soldados dos diferentes exércitos ao comportamento irresponsável e mentirosos dos guias, mestres, pensadores, líderes religiosos e partidários.
Enquanto a juventude morria na guerra, os “chefes de Estado, verdadeiros autores criminosos” não ousavam aceitar sua responsabilidade, e se esforçavam sorrateiramente por “jogar a culpa no adversário” (Id., 1914b, p. 5). Ao mesmo tempo, observava, os diferentes povos se resignavam sob a ideia de que “uma força mais poderosa que os homens” os conduzira a uma guerra inevitável. O sacrifício dos jovens, a mentira criminosa dos líderes e a resignação dos povos compunham uma fórmula dramática de relações políticas. O otimismo do pré-guerra agora se esfacelava em minúsculos pedaços.
Rolland afirmava que na guerra as duas principais “forças morais” dos países Europeus, o cristianismo e o socialismo, entravam em falência definitiva. Religiosos e laicos haviam se mostrado “os mais ardentes nacionalistas” e toda a moralidade internacionalista dissolvera: “os puros depositários da pura doutrina, os socialistas alemães, apoiaram no Reichstag os créditos de guerra” (Ibid., p. 5).
Rolland escrevia no começo da guerra e sabia que esta não poderia mais ser detida, que uma verdadeira máquina de destruição humana fora posta em movimento e arrastava consigo os pilares da civilização. Sua atitude de denúncia dos responsáveis e dos indiferentes, evocava um “tribunal de consciências” e afirmava uma voz “para aqueles que não podem ou não ousam falar” (Ibid., p. 5). Esta “voz” continuaria a falar nos meses seguintes, em uma série de artigos seus sobre o impacto da guerra na cultura e vida intelectual e moral europeia, reunidos no ano seguinte no formato de um livro justamente com o título Au-dessus de la mêlée (Id., 1923).[3] Rolland fazia de seu livro, ao mesmo tempo, uma forma de protesto contra a destruição humana promovida pela guerra e seus senhores, e um manifesto para que o pensamento crítico se elevasse “acima” do conflito e pudesse, deste lugar, observá-lo em sua totalidade. O convite de Rolland era o da retomada do internacionalismo como perspectiva e esta não poderia ser realizada sem que o otimismo sacrificado, o abandono cruel das responsabilidades e a indiferença tola fossem duramente criticados.
A crítica destes artigos se voltava, ainda, ao papel político dos intelectuais tradicionais, os “ídolos” da cultura que, “na crise atual, não apenas foram os mais expostos ao contágio bélico, como contribuíram prodigiosamente para difundi-lo”. No contexto da guerra, afastados dos problemas concretos da vida, estes “ídolos” direcionavam sua paixão “à concepção que melhor servia” (Id., 1914c, p. 5). Em contraste, Rolland lamentava a destruição no front das verdadeiras “reservas intelectuais e morais” (Id., 1914c, p. 5). Em meados de 1915, Rolland voltou a este tema em outro artigo, “La route en lacets qui monte” [O caminho sinuoso para cima] (Id., 1919, p. 8), que seria traduzido para o italiano e publicado em maio de 1919 no primeiro número de L’Ordine Nuovo, periódico criado em Turim por Antonio Gramsci, Angelo Tasca, Humberto Terracini e Palmiro Togliatti.
O Partido Socialista Italiano havia sido uma das poucas organizações europeias a rejeitar a guerra por meio de uma política da “neutralidade” diante do conflito, mas mesmo esta posição entrava em crise com o passar do tempo. Apesar do pacifismo socialista, a neutralidade se convertia, na prática, em uma forma de convivência com o militarismo nacionalista, ao mesmo tempo em que abria um flanco no interior do movimento socialista para ataque contínuo dos defensores da intervenção italiana na guerra. A tradução do artigo de Rolland depois do fim do conflito falava que “duas tarefas são possíveis para os raros espíritos livres” em busca de “uma brecha entre os crimes e loucuras acumulados” na guerra: o balanço dos erros e a busca dos motivos para ter esperança no futuro. As tarefas do pessimismo e do otimismo.
Já durante a guerra Rolland notava o início de um fenômeno importante. Os otimistas que haviam sustentado o conflito com base na “fé no progresso sem paradas ou passos atrás” passavam, “sem transição, do excesso absurdo de um otimismo preguiçoso, à vertigem de um pessimismo”. Depois do fim do conflito, era contra esta vertigem que os socialistas do L’Ordine Nuovo recuperavam em Rolland uma fonte para enfrentar o “muro de ilusões complacentes” que impedia aos neopessimistas ver e sentir “o sentimento da humanidade” que brotava dentre os escombros. “Coragem, irmãos! Existem motivos, apesar de tudo” afirmara Rolland em 1915. Em 1919, a Revolução Russa e as lutas operárias de Turim confirmavam a força do otimismo realista que o escritor francês ajudara a compreender.
Mas mesmo o realismo bolchevique não deixou de sofrer a tentação do otimismo. As resoluções dos dois primeiros congressos da Internacional Comunista exalam a confiança cega de que o capitalismo estava com seus dias contados. A derrota da revolução alemã em 1921 foi um duro choque de realidade. O 3º Congresso da Internacional já alertava para os perigos de acreditar que um desenvolvimento linear da luta política levaria a classe trabalhadora à conquista do poder político. A fórmula política da frente única visava transformar o pessimismo em uma força política.
A ascensão do stalinismo deu uma segunda chance ao otimismo. Em fevereiro de 1928 o 9 Pleno do Comitê Executivo da Internacional Comunista anunciou o advento de um “terceiro período da revolução mundial”. O 6º Congresso da Internacional Comunista definiu esse período como aquele da “tremenda intensificação de todas as contradições do capitalismo devido ao grande fortalecimento econômico e político da União Soviética, pelo rápido crescimento dos movimentos revolucionários nacionais nos países coloniais e semicoloniais – principalmente na China – e pela intensificação da luta de classes entre a burguesia e o proletariado nos países capitalistas” (Communist International, 1932, p. 3-4)
Na prisão, onde se encontrava desde novembro de 1927, Antonio Gramsci recebeu as notícias do novo giro da Internacional Comunista. No grupo de militantes comunistas que se encontrava com ele preso logo surgiram as diferenças. Mesmo depois de ter decidido suspender as discussões com seus companheiros de infortúnio continuou a refletir sobre aquelas discussões. Essa reflexão aparece em um grande numero de notas e, provavelmente, constituem o núcleo político dos Quaderni del carcere. Em algumas delas a análise sobre o otimismo e o pessimismo ocupam um lugar central. Para Gramsci, o otimismo era uma atitude política que estimulava a passividade. No quaderno 9, apontou o forte nexo existente entre o otimismo fatalista – aquela atitude perante a vida que considera a vitória certa –, as crenças de fundo religioso – os “fetiches” –, e a passividade – ou seja, a resignação perante o presente:
“Otimismo e pessimismo. Deve-se se observar que o otimismo não passa, muito frequentemente de um modo de defender a própria preguiça. A própria irresponsabilidade, a vontade de não fazer nada. É também uma forma de fatalismo e de mecanicismo. Ele se baseia em fatores alheios à própria vontade e atividade, exalta-se aparentemente, a partir do fogo de um entusiasmo sagrado. E o entusiasmo não passa de adoração exterior de fetiches. Reação necessária que deve ter como ponto de partida a inteligência. O único entusiasmo justificável é aquele que acompanha a vontade inteligente, a atividade inteligente, a riqueza inventiva em iniciativas concretas que modificam a realidade existente” (Q 9 § 130, p. 1191-1192).
O antídoto para o otimismo era a inteligência, mas uma inteligência ativista, que enfrentasse a realidade procurando compreendê-la e orientar ações em condições de transformá-la. Percebe-se na escolha das palavras a na maneira de colocar o problema a leitura das teses Ad Feurbach de Karl Marx, que Gramsci traduziu na prisão. O prisioneiro entendia a máxima de que os filósofos haviam interpretado a realidade e que era chegada a hora de transformá-la, como expressão da identidade entre teoria e prática. “Vontade inteligente” e “atividade inteligente” eram as fórmulas que sintetizavam um programa político-cultural com vistas a mudar o mundo.
Não é de se estranhar, pois, que, nas notas em que analisou as implicações teóricas e políticas do otimismo, tenha voltado à velha fórmula de Romain Rolland. E assim como o escritor francês, Gramsci analisou o otimismo como um fenômeno de época. A exaltação fatalista era simétrica ao pessimismo desesperado. Ambos fenômenos nasciam de um colapso civilizatório – a guerra mundial, o fascismo e o stalinismo – que produzia efeitos “doentios”. O antídoto, estava mais uma vez em uma inteligência prudente e comedida:
“Todos os mais ridículos fantasiadores que em seus esconderijos de gênios incompreendidos fazem descobertas assombrosas e definitivas precipitam-se sobre cada novo movimento convencidos de poder difundir suas patranhas. Por outro lado, todo colapso acarreta desordens intelectuais e morais. Deve-se criar homens sóbrios, pacientes, que não se desesperem perante os piores horrores e não se exaltem perante uma bobagem qualquer. Pessimismo da inteligência, otimismo da vontade”. (Q 28, § 11, p. 2331-2332)
A fórmula “pessimismo da inteligência, otimismo da vontade” sintetizava, metodologicamente, uma atitude perante a realidade, uma realidade que se quer transformar. O otimismo que ai se afirma não é aquele fatalista. Seu substrato não é a fé no progresso. Trata-se de um otimismo informado por uma razão cética, que não se impressiona com os movimentos conjunturais na sociedade e se interroga metodicamente sobre aqueles mais profundos e duradouros. Apenas controlado pelo pessimismo da razão poderia o otimismo dos socialistas libertar-se de sua carga teológica. Mas não foi esse o programa metodológico que predominou no movimento socialista, no qual ora o otimismo justificou a passividade, ora um ativismo inócuo. Reconstruir criticamente a história política do otimismo no movimento socialista não deixa, por isso mesmo, de ser uma reflexão sobre os impasses desse movimento.
Referências bibliográficas
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Magia, técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura, e história da cultura. Obras escolhidas v. 1. São Paulo: Brasiliense, 1996 [1940].
COMMUNIST INTERNATIONAL. The Struggle Against Imperialist War and the Tactics of the Communists. Resolution of the 6th World Confress of the Communist International, July-August 1928. New York”Workers Library, 1932
KAUTSKY, Karl. O caminho do poder. São Paulo, SP: Hucitec, 1979. 108 p.
GRAMSCI, Antonio. Quaderni del carcere. Torino: Einaudi, 1977.
ROLLAND, Romain. A la memoire de Charles Péguy. Journal de Genève, n. 259, p. 1, 20 set. 1914a.
_______. Au-dessus de la mêlée. Journal de Genève, n. 260, p. 5, 22 set. 1914b.
_______. Les idoles. Journal de Genève, n. 339, p. 5, 10 dez. 1914c.
_______. Les meurtre des élites. Journal de Genève, n. 339, p. 5, 10 dez. 1914c.
_______. La via che sale a spirale. L’Ordine Nuovo, a. 1, n.1, p. 8, 1 mai. 1919.
_______. Au-dessus de la mêlée. Paris: Albin Michel, 1923.
VALABRÈGUE, J-P. Romain Rolland: Non a la haine. Cahiers de Brèves, n. 12, p. 11-14, dez. 2008.
Notas
[1] “O conformismo, que sempre esteve em seu elemento na socialdemocracia, não condiciona apenas suas táticas políticas, mas também suas ideias econômicas. E uma das causas do seu colapso posterior. Nada foi mais corruptor para a classe operária alemã que a opinião de que ela nadava com a corrente. O desenvolvimento técnico era visto como o declive da corrente, na qual ela supunha estar nadando. Daí só havia um passo para crer que o trabalho industrial, que aparecia sob os traços do progresso técnico, representava uma grande conquista política. A antiga moral protestante do trabalho, secularizada, festejava uma ressurreição na classe trabalhadora alemã. O Programa de Gotha já continha elementos dessa confusão. Nele, o trabalho é definido como “a fonte de toda riqueza e de toda civilização”. Pressentindo o pior, Marx replicou que o homem que não possui outra propriedade que a sua força de trabalho está condenado a ser ‘o escravo de outros homens, que se tornaram… proprietários’” (Benjamin, 1996 [1940]).
[2] Ver, por exemplo, Kautsky, 1979 [1909].
[3] A primeira opção de título para esta coletânea era “Au-dessus de la haine” [Acima do ódio], mas pouco antes da impressão Rolland voltou para o título original, homônimo do artigo de setembro de 1914 (Valabrègue, 2008, p. 11).
Fotografia de Amalyn Malix