Notas sobre um feminismo valente

Daniela Mussi

Em 21 de outubro, à sombra dos escândalos de corrupção e dos pesos e contrapesos que compõem o jogo do governo e oposição, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 5069/2013 que amplia a criminalização da realização do aborto no Brasil.[1] Apresentado por Cunha em 2013, à sombra das lutas populares que sacudiam o país, o conteúdo do projeto é um claro retrocesso em relação ao previsto na lei de 1940 e compõe de maneira magistral a sinfonia conservadora que vem sendo executada no Legislativo, ao lado da lei “antiterrorismo” e da redução da maior idade penal.

Um compasso ritmado ganha corpo nesta casa contra os direitos das mulheres, da juventude negra e da periferia das grandes cidades, e dos que lutam. No contrapé da Câmara dos Deputados, o ajuste fiscal promovido pelo governo federal renova a subalternização das massas trabalhadoras. A propaganda triunfalista dos programas sociais já dá espaço a índices preocupantes de desemprego, inflação e endividamento. Neste cenário, a população feminina e a juventude se destacam como as mais afetadas pelo desemprego crescente no último ano no Brasil.[2]

O espetáculo da mórbida sincronia entre o ajuste econômico-social se combina a uma forma de ajuste repressivo na vida política e cultural saltou aos olhos com os recentes protestos de milhares de mulheres contra Cunha e o PL 5069/2013. Não se trata aqui de afirmar uma suposta “orquestração” consciente entre Cunha e Dilma, ou entre Legislativo e Executivo, mas de destacar o fato de que a vida política dos subalternos tem relação direta com o desvelamento dos contornos da hegemonia. Ou, como faria Maquiavel, reconhecer a vantagem específica do ponto de vista subalterno para compreensão da política dominante (e não apenas o contrário).

A atual luta feminista contra a criminalização dos direitos reprodutivos é ampla e carrega consigo a insígnia de um ciclo de lutas que ainda não conseguimos captar em toda sua extensão. Dela tomam parte gerações novas e experientes de feministas, diferentes partidos políticos (de oposição e apoio ao governo), intelectuais, ativistas e uma parte importante da opinião pública. É possível mapear algumas de sua raízes.

Em 2011, a Marcha das Vadias anunciou despretensiosamente a emergência de uma onda de protestos que encontrava dificuldades de incorporação às lutas populares estruturadas pela vida sindical e partidária (e era, por isso, mais frágil e potencialmente isolacionista). De lá para cá, a vida ficou mais difícil e muito mais interessante para o movimento feminista brasileiro. A polêmica acendida na opinião pública há uma semana pela presença de uma passagem de O Segundo Sexo de Simone de Beauvoir em uma prova do Enem é parte de um empuxo cultural que ainda está longe de esgotar suas contradições e sua novidade.

Quando, em 2013, irreverência e inquietação tomou as ruas das cidades brasileiras, com suas contradições aguçadas pela nova escala, esse feminismo em ebulição estava lá. Em junho, a novidade das “vadias” esteve no coração da coragem de “tomar as ruas” e de um acelerado tempo político que evidenciou partes ressacadas e endurecidas do ativismo brasileiro e jogou luz sobre perguntas e inquietações que passavam desapercebidas em seu interior.

Neste mesmo 2013, quando os protestos já haviam se despedido das ruas, o Movimento Mulheres em Luta (MML), impulsionado por organizações políticas da oposição de esquerda ao governo, realizou seu primeiro encontro com mais de duas mil mulheres trabalhadoras e estudantes com a proposta de organizá-las cotidianamente.[3] Com a mesma coragem e dificuldades recém descobertas, o MML lançou sua luta contra o machismo cristalizado no interior do movimento sindical e organizações de esquerda.

Não por acaso, no segundo turno da corrida presidencial de 2014 a recuperação da trajetória de luta contra a ditadura de Dilma Roussef foi decisiva para sua vitória. Uma jogada de marketing político? Sem dúvida. A pergunta é: por que funcionou? Que imaginário o slogan “Dilma, coração valente” queria capturar?

Os recentes protestos contra o PL 5069/2013 tem o agradável aroma da espontaneidade dos protestos de 2013. Curiosamente, porém, não foram os primeiros protestos massificados de mulheres do ano. Antes deles, em agosto, em meio às contradições da adaptação burocrática avançada de organizações como a CUT, a Contag e o MST, a Marcha das Margaridas reuniu dezenas de milhares de mulheres do campo em Brasília para reclamar do governo a realização de uma agenda de direitos.[4] Esta marcha, que tem entre a Marcha Mundial de Mulheres em sua organização, contém uma dupla simbologia. Representa, ainda, a  força acumulada por décadas de organização de mulheres. Por outro lado, sua iniciativa revela muito da tragédia do transformismo das direções e organizações feministas ligadas a estas entidades, sua absorção irreversível pela política de Estado.

Transformismo é, como muitos sabem, um conceito de Antonio Gramsci. Nos termos do nosso debate feminista, falar de transformismo significa se mover no plano difícil no qual uma concepção unitária – ou daquilo que permite o feminismo se encontrar com a perspectiva socialista – desmoronou. Significa, também, entender como, entre os escombros irreconhecíveis desta derrota, as lutas de mulheres ressurgem e vestem peças de roupas desencontradas daquilo que se perdeu. E, no caminho para o reencontro da sua razão de ser com a razão de ser da luta de todos os oprimidos, as feministas reinventam suas formas de pensar e agir.

Um feminismo valente deu as caras nas ruas esses dias. Negou as ilusões, reencontrou sua vocação no embate sem tréguas. Por isso, e por muito mais que isso, ele tem algo a ensinar.[5]

Notas

[1] COMISSÃO DE CONSTITUIÇÃO E JUSTIÇA E DE CIDADANIA. Projeto de Lei nº 5.069, de 2013. Brasíli: Câmara Dos Deputados, 2013. Disponível em: http://bit.ly/1MIuzQ2). Para uma análise crítica do PL 5069/2013, ver ARAÚJO, Tatianny; HOEVELER, Rejane. PL  5069/2013: um retrocesso histórico para as mulheres brasileiras. Blog Junho, 28 out. 2015, Disponível em: http://bit.ly/1NgLHB3.

[2] Ver FERNANDES, Daniela. Desemprego de jovens no Brasil deve superar média mundial, diz OIT. BBC Brasil, 8 out. 2015, Disponível em: http://bbc.in/1Q2eTMU. Ver também o fluxograma do IBGE produzido no mês de setembro para a Pesquisa Mensal de Emprego feita seis capitais brasileiras: IBGE. Pesquisa mensal de emprego: Ibge estimativas para o mês 09/2015 (em mil pessoas). Região metropolitana RE, SAL, BH, RJ, SP e POA. Disponível em: http://bit.ly/1kj6Nmy.

[3] Para um vídeo deste encontro: http://bit.ly/1l12op8

[4] Para a Marcha das Margaridas, ver vídeo: http://bit.ly/1GF4WTP

[5] Para um vídeo do ato contra do PL 5069/2013 realizado em São Paulo, ver vídeo: http://on.fb.me/1k1WXGl

Ilustração de Humberto Tutti

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