Feminismo e política: notas de leitura
Daniela Mussi
A publicação por aqui de uma introdução a alguns dos principais temas e polêmicas da teoria feminista desenvolvida nas últimas décadas se insere em um movimento contraditório de expansão e concentração do debate teórico e político vivido hoje pelas feministas brasileiras. Contraditório justamente pelas discordâncias que o acompanham, nos impasses entre a massificação de uma agenda feminista e a crítica que deve acompanha-la não apenas como negação do machismo mas como negação de toda a estrutura (econômica, racial, sexual) que o acompanha.
Birolli e Miguel (2014) percebem este impasse e buscam nas descobertas mais recentes a partir do feminismo radical e socialista (especialmente do ritmo de pensamento proposto pelas feministas negras), uma orientação que possa permitir às brasileiras uma apropriação socialmente critica do olhar sobre as relações de dominação. Em especial, se dedicam a evidenciar os limites da teoria política liberal, individualista, abstrata e orientada por uma vocação masculina, em absorver a questões colocadas pela luta das mulheres desde a Revolução Francesa. Contra a teoria política tradicional, propõem a pluralidade e pretensões democráticas que emanam das elaborações feministas, verdadeiramente capazes de avançar na solução para os dilemas das relações de gênero, classe e raça.
Neste sentido, o livro que Birolli e Miguel organizaram discute um conjunto de questões pertinentes à teoria política e que são enfrentadas pelo feminismo. Apresentadas na forma de binômios problemáticos, aparecem as questões da esfera publica e privada; da estrutura familiar e justiça social; da identidade e diferença; e da representação politica e autonomia. Em seguida, para captar alguns dos debates que o movimento feminista tem promovido e que podem interessar às ativistas brasileiras, os autores apresentam e discutem as polêmicas sobre o aborto, a pornografia e a prostituição.
O fortalecimento do olhar feminista e democrático é uma intenção explicita do livro de Birolli e Miguel, mas certamente não é seu único mérito. O levantamento das fontes bibliográficas que conformam as polêmicas discutidas, bem como o caráter didático da exposição de alguns dos principais conceitos e teorias no interior do movimento feminista, tornam o livro uma ferramenta interessante para educação política nesta área. Cada capítulo pode, por exemplo, auxiliar a conformação de um roteiro de estudos e discussão, o que pode ser feito individual ou coletivamente. Além das sugestões bibliográficas, isto é facilitado pelo esforço dos dois autores em esclarecer os principais argumentos das posições contrastantes no que cada uma possui de mais sólido em sua contribuição.
Na reconstrução dos diferentes momentos do pensamento feminista, Birolli e Miguel enfatizam os limites das abordagens que não pontuam a necessidade da luta das mulheres objetivar também o fim das desigualdades sociais e raciais. A combinação entre essas esferas de luta, entretanto, é difícil e revela o problema-chave que o pensamento crítico enfrenta hoje com a recuperação da perspectiva socialista para pensar o feminismo. Existe algo capaz hierarquizar o entendimento da dominação machista, racista e de classe? Ainda que isto não seja desenvolvido em termos teóricos, os dois autores seguem a pista da interseccionalidade para afirmar uma correlação orgânica entre as diferentes formas de dominação, e a impossibilidade de assumir a predominância definitiva de uma sobre as outras sem correr o risco da indiferença e mesmo da acomodação diante das injustiças e da opressão.
A argumentação é forte na crítica aos limites de uma interpretação reducionista da opressão às mulheres e ao apontar a necessidade de considerar os múltiplos ângulos que a conformam. O machismo vivido pelas mulheres brancas e escolarizadas não pode ser tomada como referencia universal para compreensão da dominação masculina e das instituições modernas que conformam a vida privada e acesso à participação política e aos direitos das mulheres em geral. Tampouco o feminismo pode se reduzir a um embate pela igualdade de oportunidade no interior sociedade moderna, mas precisa pautar exatamente a transformação radical desta sociedade e dos indivíduos.
A questão de fundo aberta pelo livro de Birolli e Miguel é justamente como esta luta pode ser endereçada e como o feminismo pode se fortalecer no contato com as lutas contra o racismo e contra a exploração social. Neste ponto, os autores deixam muitas questões em aberto e inquietações. Em termos de uma teoria política aberta para absorver o problema da dominação masculina, é latente a demanda por uma concepção do Estado, ou de como os conflitos se revolvem na arena política. É possível avançar substancialmente na luta contra o machismo sem pensar a superação do Estado? Esta superação não exige alguma forma de confluência estratégica das lutas sociais para a qual o feminismo contribua de maneira orgânica? Qual a natureza desta confluência?
No contexto em que os direitos sociais, bem como as conquistas democráticas, em especial da população negra, feminina e homossexual, são profundamente atacados no Brasil, a grande política parece readquirir uma merecida centralidade. Não por acaso é justamente neste plano que os modelos teóricos liberais explicitam seu caráter abstrato e indiferente aos movimentos sociais das classes e grupos subalternos. Não por acaso, também, emerge a demanda por novas elaborações teóricas ou pelo resgate de elaborações que a crise do socialismo e do marxismo no final do século XX haviam soterrado por longos anos.
Feminismo e política (Miguel; Birolli, 2014) é, neste sentido, uma iniciativa feliz e rica de consequências para o desenvolvimento e fortalecimento de uma nova geração de lutas e reflexões feministas no Brasil. Uma geração que, sem abandonar a luta das mulheres, enfrentará o duro combate da construção de um novo amálgama em defesa de uma nova sociedade e de novos sujeitos. O livro é, na verdade, um pequeno indício de que esta novidade já começou a germinar.
Referência bibliográfica
MIGUEL, Luis Felipe; BIROLLI, Flávia. Feminismo e política: uma introdução. São Paulo: Boitempo, 2014.
Ilustração de Marlos Anjos