Chacina de Campinas: um documento de barbárie

Daniela Mussi

No badalar das últimas horas de 2016, muitos no Brasil respiravam aliviados o encerramento de um ano péssimo, marcado por golpes que desvelaram o abismo econômico, político, cultural e moral que draga lenta e dolorosamente o país.

A chacina perpetrada em Campinas por um homem contra sua ex-companheira, seu filho e uma família inteira em plena virada de ano mostra, no entanto, que este alívio não passa de uma ilusão ou, quando muito, de um desejo latente de evadir-se de uma realidade massacrante. Um desejo que se apagou antes mesmo que a fumaça dos fogos de artifício pudesse ser dissipada no ar.

O ano que desejamos enterrar registrou o cotidiano de barbárie que se instala na subjetividade e nas relações sociais à medida em que a crise se agudiza. O assassinato e violência cotidianos contra mulheres e crianças é uma forma particular com que se pode identificar a barbárie e sua morbidez. Nossa cultura, parafraseando Walter Benjamin, é também nossa barbárie.

O impeachment de Dilma Rousseff foi televisionado e, entre as diversas “sessões” dos três poderes, a do Congresso Nacional em 17 de abril de 2016 – sessão que autorizou a continuidade do processo de afastamento – se converteu no símbolo acabado da dimensão sexista que acompanha a crise. Um golpe parlamentar perpetrado em nome “da família” por dezenas de deputados corruptos que neste início de 2017 se organizam para barrar a pequena vitória das mulheres brasileira no reconhecimento (tímido, aliás) pelo STF da legitimidade do aborto.

Em junho, outro exemplo. Um caso de estupro coletivo de uma jovem em uma favela do Rio de Janeiro provocou na opinião pública um intenso debate sobre o que ficou conhecido por “cultura do estupro”. Contra a vítima, correntes de opinião reacionárias propagandearam o argumento de que esta havia consentido o sexo com os homens que a filmaram nua e inconsciente sob uma cama imunda enquanto manipulavam seu corpo.

Em dezembro, um vendedor ambulante é brutalmente assassinado em uma estação do metro de São Paulo ao tentar defender uma travesti do ataque homofóbico de dois homens que seguiram afirmando sua conduta como uma “burrada” e seu caráter como “pessoas boas”. Poucos meses antes, um vídeo de um espancamento brutal de uma travesti no Rio de Janeiro circulou nas redes sociais sem a mesma repercussão. Apesar da grande mídia seguir caracterizando as duas travestis perseguidas no metro por “homossexuais”, não é preciso muito para percer que estas possuem uma identidade de gênero feminina. São mulheres.

Apesar dos inúmeros exemplos e motivações, o feminicídio – assassinato ou tentativa de assassinato de mulheres por motivação misógina – é uma realidade que muitos preferem não admitir. Neste caso, a violência se converte em uma realidade paralela, uma miragem, algo próprio dos pesadelos dos quais se pode despertar. Em um ciclo vicioso, o feminicídio se repete, mostra sua verdade e concretude, apenas para ser negado à exaustão até que possa parecer que nunca existiu. Até a próxima morte.

O ano que queremos enterrar nos assombra, como um filme em cujo roteiro o mesmo dia se repete, os mesmos eventos, as mesmas relações, sem que se possa evitar a repetição.

Documento de barbárie

Na chacina de Campinas, uma carta foi distribuída pelo assassino previamente. Neste documento, Sidnei Ramis de Araújo mostra que planejava de maneira consciente seus atos e dava a eles uma conotação não apenas pessoal – ou “passional” – mas claramente política. “Não tenho medo de morrer ou ficar preso” – começa ele. E, de fato, impunidade sobre o assassinato de uma mulher segue uma realidade. Qual o motivo da indignação de Sidnei? Ele mesmo revela: o fato de que sua ex-mulher pudesse retirar dele a “liberdade” por meio da lei. O fato de que uma mulher pudesse restringir os movimentos e ações de “um pai” ao buscar ser protegida pelo Estado contra ele. Seu assassinato – do filho em comum e daqueles que com ela celebravam o ano novo, a maioria mulheres – deveria servir símbolo da restauração desta “liberdade”. Trata-se, portanto, de um documento de um crime político-pessoal.

“Homens babacas morrem e matam por futebol (…). Eu morro por justiça, dignidade, honra e pelo meu direito de ser pai.” Este trecho da carta deixada pelo assassino de Isamara Filier e de sua família é exemplar: o assassinato é justificado em nome do “direito de ser pai”. Esta expressão se liga a declarações que encontramos cotidianamente em discursos de negação e estigma do lugar dos direitos e da luta das mulheres e do movimento feminista na construção de uma sociedade mais justa e democrática no Brasil. Aqui, do direito “a ser pai” se chega ao direito do patriarca. E ao patriarcado.

Nesse sentido, é fundamental interpretar a visão de mundo que estrutura esta violência, desvincular esta chacina da ideia de que foi perpetrada por um “louco”. Ela é um símbolo do avanço do ideário e cultura conservadores no Brasil, bem como das consequências deste avanço para a vida das pessoas. Este assassinato é a maldição que nos encarcera no ano de 2016 e, por isso, impõe a urgência de pensar os rumos da sociedade brasileira, o combate do conservadorismo e o lugar do feminismo e da reconstrução da subjetividade humana.

“As vadias”

Não é acaso. Não é coincidência. A carta do assassino da chacina de Campinas caracteriza de maneira individual e coletiva as mulheres contra as quais se levanta: as vadias. Quem são as vadias? São as mulheres que lutam por seus direitos e de suas crianças, que fazem valer a Lei Maria da Penha. As mulheres que ” tem medo de morrer” porque tem algo para viver por. Mulheres “com pouca idade”, e não se trata aqui meramente de idade biológica. Trata-se de um ataque frontal às mulheres jovens, politizadas e que inspiram as demais.

A carta de Sidnei é assustadoramente reveladora do ressentimento com que as lutas das mulheres por seus direitos é tratada em tempos de crise. E mais. O documento evidencia, por um lado, um apoio emergente (ou ao menos potencial) na própria sociedade civil ao desmonte dos direitos que estas lutas foram capazes de conquistar. E, por outro, um contorno possível que a marcha pela restauração da plena “liberdade” misógina anterior pode adquirir na prática.

Além de uma tragédia humana, a chacina de Campinas pode representar, neste sentido, um marco simbólico de inflexão na já difícil correlação de forças enfrentada pelo movimento feminista brasileiro. Ela opera, simbolicamente, como tradução do golpe sofrido pela democracia brasileira em 2016 para a realidade da luta das mulheres. Para tal, produziu seu documento próprio mas, como na vida das mulheres não poderia ser diferente, este documento veio assinado à sangue.

Colagem de Singh Bean

©Daniela Mussi - danimussi@ufrj.br | 2021 por Luana Kava