A hora e a vez das mulheres párias
Daniela Mussi
Em 2014, a historiadora grega e professora da Paris VIII, Eléni Varikas, teve o livro A escória do mundo. Figuras do pária traduzido e publicado no Brasil, com uma repercussão bastante localizada. O livro é resultado do desenvolvimento de uma pesquisa sobre o nascimento e a longevidade da metáfora do pária na cultura e pensamento político ocidental. Na cultura brasileira este termo não é muito usado: nos referimos a ele pejorativamente e vagamente para falar da inadequação social de determinado indivíduo ou grupo, ou usamos o termo para nos referir ao abandono ou a desagregação de um individuo ou grupo em relação a um conjunto homogêneo mais geral.
O trabalho de Varikas é interessante justamente porque reconstrói a origem da metáfora usada para pensar “a singularidade do indivíduo que não se encaixa na definição do grupo para o qual está designado por um processo de alteridade” (Varikas, 2011, p. 126). O pária, além disso, não é aquele que se provém de qualquer grupo para definir a si mesmo, mas emerge daqueles grupos construídos e estigmatizados como “de menor valor” em cada contexto histórico (Ibid., p. 127).
Em sua reconstrução, Varikas está particularmente preocupada com o fenômeno de “apagamento da memória” que acompanha os desenvolvimentos e descontinuidades da figura do pária ao longo do tempo. Este apagamento é, para a historiadora, uma característica importante do reforço das relações de desigualdades e exploração que edificam a existência de grupos sociais e indivíduos “párias”, ou seja, para a reprodução sempre renovada de novos párias. Justamente por isso o trabalho historiográfico do livro mostra em que medida a produção de párias assume na modernidade uma característica particular, que contraditoriamente projeta esta metáfora para frente.
Pária como metáfora para pensar a opressão moderna
O uso moderno do termo pária possui uma origem colonial, no século XVI, como designação usada pelos ingleses para certos grupos sociais na Índia, o que faz com entre os indianos este adquira rapidamente caráter pejorativo, como insulto colonialista. Em seguida, no processo de liberação nacional indiano, este é incorporado ao vocabulário estamental bramânico para designar os “intocáveis”, o dalit, o impuro. Em outras palavras, ele é absorvido da cultura colonialista inglesa e inserido na lógica de castas indiana como reforço da hegemonia bramânica sobre as castas inferiores. Este sentido “nacional” sobrepõe a imagem elaborada pelos ingleses do pária como “cão” e “delinquente” ao conteúdo político tradicional da exclusão e desigualdade social entre os indianos.
Mais tarde, mostra Varikas, o termo seria desvinculado da estrutura tradicional do sistema de castas e teria adquirido novas elaborações, “especificamente ocidentais e modernas”. Curiosamente, nota a historiadora, neste ciclo de atualização, o pária teria desenvolvido uma vida simbólica ambígua, mantendo sua face pejorativa mas agregando outra, do pária como uma forma de resistência. Esta segunda face teria inicialmente se desenvolvido a partir do surgimento de uma literatura romanceada sobre o “exotismo” dos nativos indianos, bem como sobre um crescente interesse popular sobre o sistema de castas (Ibid., p. 128).
Às vésperas da Revolução Francesa, por sua vez, o significado de pária se popularizou, na literatura e panfletos políticos, como a “fonte da verdade e da justiça” como imagem poética e romantizada que projeta a emancipação dos povos escravizados, colonizados ou marginalizados. Esta “inversão de valores” marcou a imaginação política da época e estabeleceu uma “ambiguidade característica” à metáfora, do “subalterno como símbolo de marginalidade e, ao mesmo tempo, de imposição e reivindicação orgulhosa” (Ibid., p. 129).
Pária como o ponto de partida para a identidade de classe
Esta figura marcou toda a cultura do século XIX como uma imagem “familiar” ao espaço público no qual o “público plebeu” foi rapidamente e contraditoriamente formado e inserido (Ibid., p. 129). É neste novo contexto que se forjou a ideia do pária como “alguém que provoca aversão sem ter feito nada de errado”, que em sua dimensão romântica assumiu o significado de “subjetividade sensível”, do indivíduo que “revela o mundo interior” do novo público emergente ao mesmo tempo em que o conecta com a “cultura e sociedade”. O pária passa a ser identificado com a figura da “vítima que é culpabilizada” diante dos tribunais, tal como a apresenta Flora Tristan.
Curiosamente, neste processo o pária é a figura que proporciona “uma linguagem para representação do outro”, do diverso e também do antagônico; “do eu”, do íntimo e também do “nós” (Ibid., p. 13). O pária é quem oferece este recurso linguístico identitário fundamental, afirma Varikas, justamente por ele fazer parte de um “grupo estigmatizado ou depreciado” inclusive entre os subalternos, um grupo por meio do qual a diferença universal encontra sua particularidade e, assim, pode ser experimentada e comunicada em outras dimensões, que também se descobrem irredutíveis. Um bom do papel do pária para a construção das identidades coletivas nos séculos XVIII e XIX é descoberta da dimensão de classe, como mostra a pesquisa de E. P Thompson para o caso inglês.
A figura do pária se converte, portanto, em um recurso pelo qual os grupos subalternos expressam sua identidade e representam sua dignidade, partindo de diferenças singulares e históricas para o desenvolvimento de subjetividades especificamente modernas. Além disso, esta figura passa a cumprir uma papel importante no prolongamento da crítica “da lógica dos privilégios e das castas” que convive com o princípio republicano do estabelecimento “uma lei geral para todos” (Ibid., p. 130). O pária segue como uma referência eficaz para problematização da igualdade prometida e não realizada pelo liberalismo e pelo republicanismo modernos.
Varikas mostra que o pária é o elo fraco e, ao mesmo tempo, o ponto nodal da “tensão sempre presente, entre o princípio universal e as práticas de diferenciação hierárquica” existentes, bem como do fato de que a estigmatização e a exclusão perduram, crescem e prosperaram na modernidade, “não apenas em regimes autoritários mas também, e principalmente, no coração dos sistemas políticos democráticos” (p. 130). Neste novo contexto, o lugar resguardado às mulheres dentro dos vários sentidos assumidos pelo pária é central. Como mulheres “da casa”, “da rua”, “casadas”, “solteiras”, em todas as situações estigmatizantes converge o alijamento “da personalidade legal” das mulheres, o que explica porque o movimento feminista adquiriu ao longo do século XIX, ao lado da utopia socialista, uma identidade radicalmente marcada pela crítica social e pelo sentimento de rebelião contra as injustiças (Ibid., p. 131).
Pária como um conceito para pensar a situação das mulheres brasileiras
A principal contribuição da pesquisa Varikas está em promover o uso da noção de pária de forma crítica, propondo para tal a ideia da metáfora, que protege o termo contra os anacronismos e comparações mecânicas. Além disso, propõe para a construção desta metáfora uma articulação conceitual criativa, capaz de resguardar ao termo pária uma dimensão teórica. Ou seja, converte-lo em uma ferramenta para pensar a realidade e atuar sobre ela. O conceito de pária toma como ponto de partida sempre a particularidade de um grupo social específico, oprimido e “categorizado” socialmente, para colocar, em seguida, a pergunta: em que reside a “diferença” que legitima a dominação e exploração deste grupo?
Para seguir adiante no aprofundamento daquilo que emerge como “diferença” legitimada, é preciso considerar que diferentes relações sociais fazem parte de uma mesma “configuração política moderna”, na qual uma “lógica de legitimação” opera sobre todas as relações, uma
“configuração marcada por dois sistemas coexistentes de legitimação: junto ao sistema universal oficial, que é o fundamento dos direitos universais dos indivíduos para a unidade da humanidade, existe outro sistema tácito e informal de legitimação que é a base de direitos e obrigações específicos dos grupos humanos para a valorização hierárquica de diferenças reais ou supostas, ou seja, em uma área considerada pré-política” (Ibid, p. 132).
O que o conceito de pária revela, aqui, é que o desenrolar das sociedades modernas engendra um mecanismo de legitimidade das hierarquias bastante eficiente e complexo, no qual a divisão dos grupos sociais subalternos entre os que participam da “unidade da humanidade” e os que são submetidos à lógica das diferenças reais, sutilmente ocultas pelo que se pressupõe como “pré-político”. Em muitos discursos libertários e mesmo radicais, este “pré-político” se repõe na forma do reconhecimento de um espaço de compartilhamento da precariedade ou como a proposição de um suposto “consenso” humanitário que informa e dá contorno à vida social. A afirmação deste universo simbólico é fundamental para a recondução das partes em seus devidos lugares na hierarquia social, sendo que a figura do pária se converte em uma espécie de índice de como esta dinâmica se realiza.
Relegada ao mundo da pré-política, condição do pária não é mais compartilhada como parte do combate às injustiças, e quando muito é apresentada como a condição que não deveria existir, que precisa ser eliminada (ao menos de vista) para que a política prossiga onde deve e pode prosseguir. A estigmatização do pária, agora, adquire uma feição clandestina, para periodicamente irromper de maneira confusa e agressiva na arena política moderna. Esta novíssima dinâmica de conformação do pária, não poderia ser diferente, encontra na vida e conflitos vivenciados pelas mulheres um lugar bastante fértil e instável.
Dito isso, seria possível pensar se a reflexão ao redor da figura do/da pária não permitiria um caminho para a interpretação das dificuldades sob as quais se encontra o movimento feminista brasileiro nos últimos anos. Estas dificuldades se apresentam, não por acaso, no entrechoque do reconhecimento e da legitimidade, da aceitação formal e da luta por direitos substantivos para grupos sociais femininos que, em muitos aspectos, são caracterizadamente estigmatizados e categorizados.
Nas polêmicas mais recentes sobre a regulamentação da prostituição que tomaram as redes sociais por conta da realização de eventos que tematizam e, em alguns casos encorajam, o turismo sexual como prática laboral regular, a dinâmica da aceitação oficial pública combinada à diferenciação social hierárquica parece ser retomada de muitas maneiras e nas posições políticas as mais variadas.
Por um lado, na forma da aceitação quase cínica de que a atividade da prostituição poderia ter sua natureza definida pela autonomia e liberdade das mulheres. A regulamentação da prostituição, neste caso, é afirmada como sinônimo da regulamentação do sexo livre. Sabe-se que na sociedade capitalista em que vivemos, baseada na exploração e desigualdade, nenhuma forma de trabalho é “libertada” por sua regulamentação pelo Estado, e que a luta por direitos é sempre a luta por fazer avançar a mobilização e organização dos oprimidos e explorados.
O rebaixamento da prostituição à lógica do “prazer” e da “vontade” individual como argumento-chave de uma proposta de regulamentação da profissão não pode, portanto, deixar de ser opressiva às trabalhadoras do sexo e impor formas de silenciamento quanto ao que vivenciam e sentem. Afinal, se “deixam de gostar”, por que deveriam manter a regulamentação conquistada? Apesar do discurso de liberação, a lógica da culpabilização continua a operar clandestinamente, estigmatizando e deslocando as prostitutas para fora do mundo do trabalho no qual deveriam ser verdadeiramente incluídas.
Em outras formas de discurso sobre este mesmo tema, a crítica da exploração sexual das mulheres é convertida em um discurso de negação da regulamentação da atividade da prostituição. Dois caminhos são escolhidos neste tipo de discurso: um que nega veementemente a regulamentação desta atividade; e outro que crítica os termos nos quais esta é proposta no interior do movimento feminista e partidos de esquerda no Brasil. O primeiro se baseia no argumento de que, dado que a prostituição – a exploração paga, compulsória ou voluntária, do corpo das mulheres – não deveria existir, sua regulamentação não pode deixar de ser deletéria para o combate desta prática. A prostituição, assinalam, escraviza, humilha e mata mulheres jovens, pobres, imigrantes. Quando muito, o Estado deve prestar assistência e promover programas sociais que permitam essas mulheres se deslocarem da atividade em que se encontram para outras.
O segundo reconhece que a prostituição – por sua natureza econômica e difundida – deve ser encarada como um trabalho e, por isso, a conquista dos direitos das mulheres prostitutas pode ser um passo importante no combate à exploração sexual como se verifica hoje. Parte da ideia de que, mesmo que a prostituição não seja uma forma de trabalho desejável, a garantia de direitos trabalhistas que as incorporem no mundo do trabalho formal é um caminho viável para que estas mulheres possam estabelecer laços novos de dignidade e autonomia. Por isso, para esta segunda visão, a mera regulamentação da atividade exploração sexual, sem que estes direitos sejam garantidos, é absolutamente insuficiente e regressiva.
Em cada uma das posições expostas, a figura das mulheres párias, as que provocam aversão sem nada terem feito de errado, das “vítimas culpadas”, parece se repor constantemente. Ora como elogio dissimulado de uma condição que invoca por muitos ângulos a subalternidade, a violência e humilhação, ora como crítica externa e de certa forma alienada a temporalidade concreta em que a luta das prostitutas se desenvolve e se afirma. Em todos os casos, porém, os traços de autonomia que a discussão projeta – a possibilidade do feminismo se abrir para aceitar em si a prostitutas e romper com a lógica de estigmatização deste grupo de mulheres párias – são quase sempre substituído pelo discurso que as desagrega da “unidade social” na qual hoje as mulheres são mais ou menos plenamente aceitas.
Como historicamente, também aqui a figura destas mulheres párias evoca os muitos significados nos quais a inclusão política e o empoderamento de gênero se realizou e não se realizou no Brasil. E chama também a atenção para o difícil momento em que o movimento feminista brasileiro se encontra hoje, já que a descoberta das diferença não pode ainda se converter no ponto de partida para uma identidade comum. Nesta discordância de temporalidades, não é suficiente acertar o ponteiros dos relógios, improvisar a unidade. É preciso pensar a estratégia e retraçar o horizonte.
Referências bibliográficas.
Varikas, Eléni. Los desechados del mundo. Imágenes del paria. Andamios. Revista de Investigación Social, v. 8, n. 16, , pp. 123-136, mai-ago 2011.
_______. A escória do mundo. Figuras do pária. São Paulo: Unesp, 2014.
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