A fotografia viva de João Zinclar
Daniela Mussi
Como preparar o encontro imprevisível da arte com a política?
Em uma passagem dos conhecidos Cadernos do Cárcere, o marxista italiano Antonio Gramsci evocou este como o desafio de tornar toda forma de arte um fato popular, como parte da luta pela criação de uma nova cultura (GRAMSCI, 1975, p. 2185-2186). Dessa luta faria parte, ainda, a edificação de uma atividade crítica da própria arte, não “friamente estética”, mas “a crítica própria de um período de lutas culturais, de contrastes entre concepções de mundo antagônicas” (idem, ibidem). Um encontro que se realizaria ainda que arte e crítica não cansassem de brigar entre si.
O artista e o político, não raro, andam em descompasso, se desencontram permanentemente na história dos dias comuns, para só se reencontrarem nas inesperadas despedidas, nas rupturas. Aí então, o artista entrevê o político, e vice-versa. Como preparar esse encontro imprevisível? Como tornar a arte um fato popular? Como tornar a experiência limitada do artista com a política, e do político com o artista, algo novo, capaz de expandir-se sem perder sua novidade?
Cabe a cada um, propunha Gramsci, tornar-se vida. Em outras palavras, é preciso conquistar para a arte um lugar orgânico ao cotidiano das massas, assim como enriquecer a vida política dessas, tornando-a criativa, audaciosa, renovadora. Em passagem dos mesmos Cadernos, Gramsci recolocou esse problema por meio de uma metáfora histórica, a da fusão entre Renascimento e Reforma, entre a mais alta conquista estética, artística e filosófica, e a mais alta conquista “política”, de conformação de uma nova religião popular, coerente com o desafio da fundação de um novo Estado (idem, p. 340-341). Fusão que remetia ao desafio de uma “reforma intelectual e moral” na Itália, expressão usada para falar da mesma necessidade colocada para a relação entre arte e política: como superar a separação, vista aqui como fato histórico de longa data, entre vida intelectual e vida popular?
Para a nossa vida cultural, os problemas e observações formulados por Gramsci são muito úteis. Não é a pretensão, aqui, desenvolver todos os contornos das comparações possíveis a partir da constatação da mesma separação entre vida intelectual e vida popular no Brasil. O texto propõe um exercício de comparação mais restrita, entre a experiência fotográfica levada a cabo por João Zinclar, “fotógrafo dos movimentos sociais” falecido no início 2013, e a “estética da fome”, corrente intelectual e artística surgida na década de 1960, conhecida por buscar o retrato de um país não oficial, escondido, perdido entre tantas representações folclóricas, falsamente patrióticas e redutoras da vida popular brasileira. Seria, Zinclar, parte desta tradição cultural?
Uma estética do desencontro
“Eztetyka da Fome 65″ ou “Uma estética da fome” foram nomes dados à tese-manifesto escrita e apresentada pelo cineasta brasileiro Glauber Rocha, em 1965, em um congresso sobre cinema latino-americano realizado em Gênova, Itália, e passou a ser identificada com uma representação característica da cinematografia terceiromundista da época, especialmente em relação ao Cinema Novo, buscando sincronia com o movimento que eclodia internacionalmente. Escrito no contexto de fechamento do regime pelos militares no Brasil, este manifesto apresentou um panorama crítico do ambiente cultural brasileiro: “até hoje, somente mentiras elaboradas da verdade (os exotismos formais que julgariam os problemas sociais) conseguiram se comunicar em termos quantitativos, provocando uma série de equívocos que não terminam nos limites da arte, mas contaminam, sobretudo, o terreno geral político” (ROCHA, 2004, p. 63).
A vida intelectual latino-americana era colocada de um ponto de vista profundamente pessimista, em certos aspectos, desmistificador: “O problema internacional da América Latina é ainda um pouco de mudança de colonizadores, sendo que uma libertação possível estará sempre em função de uma nova dependência” (idem, p. 64. Grifos adicionados). Ao caráter dependente e colonial, Glauber somava o “método paternalista” de pensar a cultura e as artes, método “de compreensão para uma linguagem de lágrimas ou de mudo sofrimento”. Formalismo, universalismo, sectarismo, artificialismo eram suas principais expressões (idem, ibidem).
Na “fome latina”, Glauber via constituir-se um verdadeiro e antagônico sistema nevrálgico da sociedade brasileira e latino-americana, de onde emergiria tragicamente a originalidade do seu próprio cinema: “nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida” (idem, p. 66). Em oposição a uma cinematografia incapaz de ser algoz de uma “burguesia indefinida”, como rejeição do cinema dos luxuosos apartamentos, jantares e festas, a estética da fome apresentava “personagens comendo terra”, “personagens matando para comer”, “personagens fugindo para comer”, “personagens sujas, feias, escuras”, uma “galeria de famintos”. Somente uma cultura da fome, e da violência que a acompanha, seria capaz de evocar o “amor da ação e da transformação”.
A essa estética se somaria um “cinema-verdade”, “um tipo de documentário em que se usa som direto, entrevistando pessoas, personagens, e recolhendo o som da realidade, fotografando de uma forma direta, procurando captar o maior realismo possível, daí a palavra verdade” (ROCHA, 2004b, p. 71). Esse cinema tinha por característica sua realização por “homens egressos do jornalismo ou do interesse científico”, com vistas a um “instrumento de conhecimento e expressão” (idem, p. 72). Por fim, do interior desta “estética da fome”, com suas manifestações artísticas, emergia como pressuposto do político como aquele que reconhece “uma questão moral, que se refletirá nos filmes, no tempo de filmar um homem ou uma casa, no detalhe que observar, na moral que pregar: não é um filme, mas um conjunto de filmes em evolução que dará, por fim, ao público a consciência de sua própria miséria” (ROCHA, 2004, p. 67).
É possível acionar uma série de exemplos, mais ou menos eruditos (mais fracos e mais fortes, como propôs Glauber), que se apoiaram nos princípios da estética da fome, bem como elaborar gradações no interior desta, que permitiriam diferenciar filmes como Barravento (1962) e Terra em Transe (1967). De qualquer maneira, é possível encontrar seu núcleo irradiador numa certa consciência da impotência e mediocridade das classes dominantes locais, bem como da sua própria impotência como sujeito político. Deste pessimismo focado, por sua vez, emerge – quase sempre em preto e branco, ou em contrastes equivalentes – a representação de uma vida popular faminta, crédula e violenta. Esta como consequência invariável daquela. E o artista? Este é o que realiza a busca incessante da sua “razão de ser” no pressuposto daquilo que o outro não pode ser e nunca será. Uma estética encerrada no desencontro.
“Sou um fotógrafo operário e um operário da fotografia”
A fotografia de João Zinclar corre à margem da estética da fome, embora esteja muito mais próxima da vida de fome do que esta. Embora o desenvolvimento de sua vida como fotógrafo tenha coincidido com o abandono de uma vida de dedicação partidária específica, Zinclar não era um homem sem partido ou ignorante do ambiente partidário. Não era um artista “comum”. Em semelhança à trajetória dos lutadores sociais, e em diferença com a maioria dos artistas, estava sua origem operária e “o fervor apaixonado” de quem luta pelo direito de viver. Contra a “serenidade superior e a indulgência”, epidêmica nos círculos intelectuais brasileiros, e também entre os estetas da fome, gangrenados pela falsa polêmica, pelos “manualismos” ou, no melhor dos casos, pela consciência esterilizada pela impotência, Zinclar opunha uma prática artística em que a busca da beleza se entrelaçava à criatividade profana da vida popular.
Navegar por suas fotografias é ver surgir, em movimento, as cores de um Brasil como prisma. Neste, existe a fome, a violência, a exploração, como condição de um presente imposto. Mas, diferentemente dos estetas da fome, Zinclar apreende feixes de uma vida em luta contra este presente. Essa luta, quase sempre encarcerada pelo fluxo monopolista das informações e das versões dominantes, desponta nas lentes do fotógrafo-operário. Das fotos colhidas em suas viagens afloram odores, sons, sensações de um Brasil real, mas que não pode ser banalizado. Um Brasil fantasticamente popular.
Nessa profanação estética do “realismo”, suas lentes encontraram também milhares de registros simples, de reuniões e manifestações corriqueiras, das mais diversas organizações e movimentos sociais que compõem a chamada “esquerda” do nosso país. Estes são registros de uma parte não propriamente bela e acabada do Brasil colorido e expressivo de tantas outras imagens. No entanto, Zinclar dedicou-se por anos, com igual afinco, à representação desta “cozinha” da história brasileira, tão desconhecida quanto os rincões do São Francisco e a realidade de seus povos.
Nesse encontro de imagens, o fotógrafo-operário fez surgir um frágil Brasil duplo, contraditório, que sofre na vida e na luta. Mas também um Brasil capaz de ignorar as falsas polêmicas dos pequenos círculos e se redescobrir na vida das massas, em seu permanente organizar-se e desorganizar-se, em sua luta por viver e nos efeitos indescritíveis dessa para a própria concepção de mundo popular. Sua moral, sua ética, sua estética.
É essa vida corajosa em ser vida que, hoje, lamenta de maneira uníssona a morte tão prematura de João Zinclar. Sua fotografia passa a saltar aos olhos não mais como parte de uma jornada inacabada, caminhada conjunta. Surge, agora, como uma experiência interrompida, um todo forçado, que exige alguma explicação. Nesse agora inesperado, não desejado, incoerentemente fortuno, nasce no mundo da vida que o fotógrafo-operário tanto clicou uma convicção: Zinclar preparava aquele encontro tão caro à Gramsci.
Referências bibliográficas
GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Carcere. Torino: Giulio Einaudi, 1975. 4v.
ROCHA, Glauber. Eztetyka da Fome 65. In. Rocha, G. Revolução do cinema novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
ROCHA, Glauber. Cinema-Verdade 65. In. Rocha, G. Revolução do cinema novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004b.
Ilustração D. Muste