A ditadura em Carl Schmitt
Daniela Mussi
“O soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção” (Schmitt, 1996, p. 87; 2006, p. 9). Com esta definição Carl Schmitt abre seu Teologia Política, de 1922, e é por meio dela que a maioria dos intérpretes sintetizam o conjunto de seus trabalhos do chamado “período de Weimar” (1918-1933). Esta elaboração de fato está no centro dos ataques do jurista alemão ao liberalismo e ao pluralismo, bem como a princípios como da separação dos poderes, da revisão judicial, as eleições majoritárias, a livre discussão e representação, que caracterizam a democracia liberal. Schmitt elaboraria dez anos depois (1932), em O conceito do político, a natureza desta definição no problema dos princípios que “prejudicam a capacidade do Estado decidir sobre a questão inevitável do amigo e inimigo, ou seja, sobre o político, e que o deixa vulnerável às emergências, que ele chamava por exceção (McCormick, 1997, p. 2; Schmitt, 1991, p. 73-74, 83, 98 e ss.).
O que pretendo mostrar aqui é que esta definição mais conhecida é resultado de uma mudança bastante curiosa e rápida no pensamento de Schmitt, que se deu entre 1921, com a publicação de A Ditadura e 1922, com a publicação de Teologia Política. Esta mudança se refere a forma da apresentação do problema da relação entre soberania e exceção. No primeiro momento, Schmitt recuperou os Discorsi de Maquiavel para descrever a instituição ditatorial da Roma antiga como “padrões teórico-históricos para medidas de emergência que preservam a ordem constitucional em tempo de crise”, e defendeu uma conjunção apropriada entre técnica (Technik) e política (Politik). Na Teologia Politica, porém, a situação excepcional passou a ser apresentada como a que exige a emergência de um soberano potencialmente todo poderoso que não deve apenas resgatar a ordem constitucional de uma crise política particular, mas também carismaticamente retira-la de seus procedimentos constitucionais originais, que Schmitt interpretou agora como pejorativamente técnicos e mecânicos.
A Ditadura
No início dos anos 1920, Schmitt desenvolveu um trabalho intenso de pesquisa sobre os temas relacionados ao Estado e a ordem constitucional, problemas que se manteriam importantes ao longo de todos os escritos do período da República de Weimar. É possível dizer, ainda, que sua atividade intelectual de Schmitt se politizou intensamente nestes anos, marcada por um embate específico com o que identificava como fenômeno mais importante e perigoso de sua época: a atuação dos bolcheviques na Revolução Russa. Internamente, Schmitt começa a trabalhar no contexto de um uso extensivo dos poderes emergenciais permitidos pelo Artigo 48 da Constituição de Weimar por Friedrich Ebert, em um contexto de convulsões sociais, tanto de direita como esquerda, e uma emergente crise econômica.[1]
É interessante notar, portanto, que embora muitas vezes Schmitt realize sua ofensiva contra o “marxismo bolchevique”, sua crítica se orienta também ao pensamento democrático-liberal, que enxerga como decadente. Em muitos de seus escritos o jurista identifica liberalismo e marxismo, e em alguns casos o último parece pensado como um desenvolvimento do primeiro.
Em 1921, é por meio deste duplo ataque que Schmitt desenvolve seu livro sobre A Ditadura [Die Dikatur]. Aqui, Schmitt apresenta pela primeira vez a preocupação mais geral que orienta sua agenda de pesquisa nos anos de Weimar: “a literatura política burguesa, até 1917, aparentou ignorar o conhecimento de uma ditadura do proletariado” (Schmitt, 2013, p. 20). O jurista critica essa literatura por se limitar a pensar a ditadura como conexão entre dominação pessoal, democracia e centralismo (Ibid., p. 21). Para Schmitt, a literatura socialista com sua “ditadura do proletariado” oferece uma definição muito mais clara, “por se tratar de uma filosofia da história de amplas dimensões, que opera somente com Estados e classes em sua integridade” (Ibid., p. 21).
Em A Ditadura, Schmitt remete sua formulação sobre a ditadura aos Discorsi de Nicolau Maquiavel, mais precisamente os capítulos 30-34 do livro primeiro, para recuperar a instituição romana clássica da ditadura como um padrão teórico-histórico coerente com a ordem republicana e necessário como medida de emergência para a preservação da ordem em um tempo de crise aguda (McCormick, 1997). No Livro 1, Capítulo 34, dos Discorsi, Maquiavel anuncia que “a autoridade ditatorial fez bem, e não mal, para república romana” (Maquiavel, 2007, p. 106). O secretario florentino pretendia, aqui, desmistificar a ideia da ditadura “como algo que, com o tempo, deu ensejo à tirania” (Ibid., p. 106). Para tal, fala da situação em que o ditador é “designado segundo as ordenações públicas e não por autoridade própria”, já que o que prejudica a república não é a “autoridade que se dá por vias ordinárias” aos magistrados, mas a que se dá por via “extraordinárias” (Ibid., p. 106).
Esta forma da ditadura que Maquiavel identifica como “ordinária”, Schmitt passa a chamar de “comissária”. Em seguida, inspirando-se na ideia de “autoridade extraordinária” de Maquiavel, Schmitt cunha a categoria de “ditadura soberana” com a qual identifica a ditadura do proletariado. Em Maquiavel, a autoridade extraordinária era associada a situações de corrupção da república, contexto em que emerge o cidadão “ofensivo” – muito rico e cheio de adeptos – que pode requerer para si a autoridade sem respeitar as vias ordinárias (Maquiavel, 2007, p.107).
Schmitt entende o conceito de ditadura soberana como a modernização da noção de “autoridade extraordinária”, interpretada para a situação em que poderes emergenciais são criados e não se restringem a devolver a ordem à constituição vigente, mas atuam de maneira a edificar uma nova constituição, desrespeitando o princípio dos contornos do poder anterior (Schmitt, 2013, p.141). Este conceito moderno teria atuado como noção na ação de Cromwell na Guerra Civil inglesa, e teria sido elaborado de maneira “inconsciente” por intelectuais como Rousseau, até se desenvolver plenamente na prática política dos jacobinos. Em seguida, teria adquirido forma consciente nas revoluções de 1848 e, posteriormente, se convertido em teoria entre os bolcheviques.
Em A Ditadura, a noção de ditadura soberana tem uma conotação claramente pejorativa e, no apelo à noção clássica de ditadura no texto de 1921, podemos perceber em Schmitt dois aspectos analíticos importantes: a) internamente, a defesa da ordem constitucional-liberal como superior aos poderes emergenciais, sendo a prerrogativa do Artigo 48 da Constituição era interpretada como momento da conjunção oportuna entre Technik [técnica] e Politik [política]; b) externamente, a crítica da radicalização da Revolução Russa, com seu desdobramento “soberano”, ou seja, de natureza constitucional extraordinária, como uma forma de corrupção da ditadura em seu sentido clássico. Por outro lado, o reconhecimento de que esta noção não significava apenas a corrupção de uma noção anterior, mas que poderia ser compreendida como uma novidade do ponto de vista teórico.
A ideia de “tecnologia política” aparecia aqui referenciada por Schmitt ao caráter de uma ditadura vigente em momentos excepcionais e temporários (comissária), e não como causa de um esgotamento constitucional que seria resolvido por uma ditadura de tipo “soberano” (McCormick, 1997, p.121). A própria caracterização do pensamento maquiaveliano seguia esse argumento pois, para Schmitt, a noção de um exercídio de “técnica racional” era o que explicava o surgimento de um texto como O Príncipe – um chamado ao poder absoluto – por um autor cuja índole republicana era evidente (Schmitt, 2013, p. 33-35).
Ao reconhecer que, de alguma forma, os bolcheviques encarnavam uma maneira de atualização da teoria da ditadura clássica, Schmitt reconhecia que estes estavam à frente da “literatura política burguesa”. Justamente por isso, via com um misto de apreensão e curiosidade o fato destes usarem os meios técnicos do poder emergencial para criar uma nova situação, não se atendo à ordem constitucional estabelecida (McCormick, 1997, p.125). A ditadura do proletariado, para Schmitt, desfigurava a distinção clássica entre ditadura e cesarismo, marginalizando o caráter comissário do poder emergencial (Ibid., p.126).
Teologia política
Em 1922, Carl Schmitt publicou Teologia Política [Politische Theologie], e aqui alterou drasticamente seu argumento sobre ditadura clássica como uma forma superior do que ele descreve como a ditadura soberana, apesar de reconhecer esta como o coração do Estado moderno. Agora, Schmitt passa a endossar a ditadura soberana e a elogiar aquilo que em A Ditadura havia analisado como politicamente patológico.
Na Teologia Política, Schmitt deixa mais ambígua a distinção entre o corpo que decide que uma situação excepcional existe e, por outro lado, a pessoa que é designada para decidir em situações emergenciais concretas, a pessoa do ditador (McCormick, 1997, p.133). Estes dois momentos (da situação normal e da situação emergencial) são agora discretamente unificados. Em seguida, Schmitt reapresenta essa fusão na ideia de que o soberano:
“decide tanto sobre a ocorrência do estado de necessidade extremo, bem como sobre o que fazer para saná-lo. O soberano se coloca fora da ordem jurídica normalmente vigente, porém a ela pertence pois ele é competente para a decisão sobre se a Constituição pode ser suspensa por completo” (Schmitt, 2006, p. 8)
Apoiado em uma interpretação da noção de soberania formulada por Jean Bodin, Schmitt afirma que não é possível definir os limites que devem ser impostos a ação do soberano na situação excepcional (McCormick, 1997, p. 134). Afinal,
“Não se pode indicar com clareza tipificável quando se apresenta um estado de necessidade, nem pode ser enumerado, substancialmente, o que pode ocorrer quando se trata realmente de um estado extremo de necessidade e de sua reparação” (Schmitt, 2006, p. 8)
Na noção de ditadura comissária elaborada anteriormente, o ditador estava livre para fazer o que precisasse em um momento excepcional particular para tratar uma crise identificada por outra instituição e nunca poderia ultrapassar a lei estabelecida, devendo devolver o governo para aquela lei.
Essa distinção importante não aparece na Teologia Política e Schmitt avança neste argumento oferecendo uma interpretação mais radicalizada do estado de exceção para o próprio contexto alemão:
“Na Constituição alemã vigente, de 1919, o artigo 48 explica o estado de exceção, mas sob o controle do parlamento do reino que pode, a qualquer tempo, exigir sua revogação. Essa norma corresponde ao desenvolvimento e práxis jurídico-estatal que procuram, por meio de uma divisão das competências e controle recíproco, protelar o quanto possível a questão da soberania” (Schmitt, 2006, p. 12).
O jurista apresenta, então, o problema da do estado de exceção como o da necessidade permanente de definição do “sujeito da soberania”, ou seja, como “aplicação do conceito a um caso concreto” sobre “quem é competente quando a ordem jurídica não oferece resposta à questão da competência” (Ibid., p. 12-13).
Em A Ditadura, ainda que critico da infiltração do pensamento positivista no pensamento e ordem politica liberais e sua limitação em lidar com o problema da soberania, ele não sugere que seria impossível a esta ordem reagir. Na Teologia política, a ordem politica liberal é apresentada como sendo tão corrupta pela ciência e tecnologia que ela precisa ser redimida pela exceção e pela ação ditatorial soberana. É neste sentido que afirma que “o estado de exceção revela o mais claramente possível a essência da autoridade estatal”, e que “na exceção, a força vital real transpõe a crosta mecânica fixada na repetição” (Ibid, p. 14-15).
Para que a “questão da soberania não seja reprimida”, continua, não é possível descrever competências específicas para o estado de exceção, tais como os controles recíprocos, a delimitação temporal, a regulamentação jurídico-estatal do estado de sítio, ou qualquer forma enumeração de suas competências extraordinárias (Ibid.,p. 12). Trata-se, nesta nova elaboração de Schmitt ecoando a teoria de Thomas Hobbes, da edificação de um poder soberano a partir do “caos”, do estabelecimento da ordem “para que a ordem jurídica tenha algum sentido” (Ibid., p. 13-14). A criação e garantia da “situação normal” só pode ser feita pelo soberano (p. 13-14).
Outro aspecto importante desta nova elaboração diz respeito à interpretação, por Schmitt, de que a teoria moderno do Estado é feita de “conceitos teológicos secularizados” (Ibid., p. 35). O jurista parte, para tal, da analogia entre “estado de exceção” na jurisprudência e o milagre na teologia. Neste ponto, Schmitt avança sobre o pensamento predominante “na era positivista”, de que a ciência e a teologia devem ser consideradas como opostas e separadas, para afirmar a natureza teológica do conceito de Estado (Ibid, ,p. 37). A negação desta natureza, explica, se deve ao efeito da teoria monarquista do Estado, “que identificava o Deus teísta com o rei”, e, na rejeição desta, a teoria secular (entre juristas, sociólogos e também na filosofia) sobre o Estado teria herdado uma espécie de “curto-circuito do pensamento” (Ibid., p. 37).
Encontramos aqui a elaboração de um tema que voltará no pensamento de Schmitt muitas vezes. Em seu conjunto de conferencias suas sobre o pensamento de Thomas Hobbes, de 1938, encontramos um exemplo do esforço de Schmitt para mostrar a identidade de seus adversários no que diz respeito ao conceito de Estado:
“A democracia liberal ocidental coincide com o marxismo bolchevique em considerar o Estado como um aparato do qual as mais diversas forças políticas podem se servir na forma de instrumento técnico neutro” (Schmitt, 2002, p. 41).
O curto-circuito que nasce do processo de “instrumentalização” do conceito de Estado explicaria porque o conceito de soberania teria se vinculado de maneira estreita ao Iluminismo e à concepção de mundo que remete à Revolução Francesa (Ibid., p. 40). Em particular, a propagação “do dogma” – radicalizado pela filosofia marxista – de que “as mudanças religiosas, filosóficas, artísticas e literárias tinham estreita relação com condições políticas sociais” (Ibid., p. 40). Isso explicaria por que o soberano, que na visão deísta mundo era aquele que, mesmo estando fora do mundo, “permanece como construtor da grande máquina”, tenha sido substituído pela ideia da “maquina que funciona sozinha” (Ibid., p. 41).
A ditadura que nasce da lei
Quando escreveu A Ditadura, Schmitt sentia-se encurralado entre a crise do liberalismo e a emergência da ditadura do proletariado como uma esfinge a ser decifrada. Em parte, a mudança de orientação que permitiu ao jurista elaborar uma reposta aos dilemas que encontrava na teoria do Estado e da soberania no pós-primeira guerra pode ser explicada pelo ambiente de crítica da técnica e mecanização burocráticas da política que se forma na Alemanha e tem em Max Weber um expoente fundamental. A análise weberiana da função do carisma na política – como uma forma de dominação que, no pós-guerra Weber passa a considerar necessária – possui certa sincronia com desenvolvimento de um conceito de soberania schmittiano, que de uma análise mais reticente e atrelada ao constitucionalismo liberal avança para uma concepção mais próxima da literatura sobre razão de Estado (McCormick, 1997, p. 137).
Uma segunda explicação, mais propriamente política, pode ser oferecida se notarmos o movimento intelectual que separa os escritos mencionados. Em A Ditadura. Schmitt aparece desesperançado em sua interpretação da tendência histórica mais geral em que o conceito de soberania e exceção surgem. A trajetória destes conceitos, a seu ver, não se descola dos teóricos da Revolução Francesa da qual a política comunista é herdeira. Nesta “mitologia”, a soberania e a ditadura servem para “destruir a velha ordem e cria uma nova” (Ibid., p. 137). Na conclusão deste ensaio de 1921, o tom pessimista de Schmitt parece evidenciar sua descrença em uma “ditadura comissária” para combater a “elite radical que vai usar os meios violentos para alcance de um processo supostamente mundial e histórico usando para tal o apoio do populacho (Ibid, p. 137).
Na Teologia Política, por sua vez, é possível observar essa intuição materializada em um esforço consciente de “confrontar a noção soberana de ditadura proposta pelos revolucionários internos e internacionais” por meio de uma “contra-teoria da ditadura soberana” (Ibid., p. 137). “Já que tanto o absolutismo como a democracia de massas emergem do mesmo movimento histórico” Schmitt sugere que um conceito “radicalizado de soberania” derivado do passado monarquista pudesse confrontar a noção radicalizada de soberania que os bolcheviques derivavam da Revolução Francesa (Ibid., p. 138). Na Teologia Política, Schmitt afirmaria ter encontrado em Benito Mussolini, e na Marcha sobre Roma que recém estabelecera o fascismo na Itália, a materialização desta contra-teoria (Schmitt, 1996, 70).
Referências bibliográficas
Bendersky, J. Carl Schmitt teorico del Reich. Bologna: Mulino, 1989.
Maquiavel, N. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
McCormick, J. P. Carl Schmitt’s critique of liberalism. Against politics as technology. New York: Cambridge University, 1997.
Schmitt, C. El concepto de lo político. Madrid: Alianza Editorial, 1991.
_______. Roman Catholicism and Political Form. London: Greenwood, 1996b.
_______. El Leviathan. En la Teoría del Estado de Tomás Hobbes. Argentina: Struhat & Cia, 2002.
_______. Teologia Política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
_______. La Dictadura. Madrid: Alianza Editorial: 2013.
Notas
[1] Entre 1923 e 1925, Friedrich Ebert, socialdemocrata e presidente da República, usou o Artigo 48 em 136 ocasiões, incluindo para a deposição de governadores eleitos. O texto do Artigo não definia precisamente o tipo de emergência que justificaria seu uso, e não oferecia expressamente ao presidente o poder legislativo. Apesar disso, este poder legislativo existia de maneira implícita na medida em que o Artigo dava ao Parlamento a prerrogativa do vetar aos decretos emergenciais por maioria simples quando esses infringissem a função constitucional parlamentar.
Ilustração Amalyn Malix